Da Rastreabilidade à Bula Digital: A Verdadeira História por Trás do Caos do SNGPC.
Publicado em: 17 de outubro de 2025
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Desde outubro de 2021, a farmácia brasileira vive em um limbo regulatório. O antigo SNGPC foi suspenso com a promessa de ser substituído por um sistema moderno, o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos (SNCM). Mas o SNCM nunca saiu do papel, deixando um vácuo que precariza a segurança do paciente e desvaloriza nosso trabalho. A história por trás desse fracasso não é técnica, é política. É a crônica de como um "jabuti" legislativo, disfarçado de avanço, matou um dos projetos mais importantes para a nossa profissão.
2009: A Promessa de um Sistema Robusto
Tudo começa com a Lei nº 11.903/2009. Ela criou o SNCM com um propósito nobre: rastrear cada caixa de medicamento, desde a indústria até a dispensação final ao paciente. A palavra "dispensação" era a chave. Pela primeira vez, teríamos um mapa em tempo real do consumo de medicamentos no Brasil, uma ferramenta sem precedentes para a saúde pública e para o combate a fraudes, que valorizaria o ato farmacêutico como o ponto final e crucial da cadeia de segurança.
A Promessa Original: O que a Lei Dizia
Em 2009, foi sancionada a Lei nº 11.903, que criou o SNCM. A intenção era revolucionária e está explícita no texto da lei:
"Art. 1º É criado o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos, envolvendo a produção, comercialização, dispensação e a prescrição médica, odontológica e veterinária, assim como os demais tipos de movimentação previstos pelos controles sanitários. "
"Art. 2º Todo e qualquer medicamento produzido, dispensado ou vendido no território nacional será controlado por meio do Sistema Nacional de Controle de Medicamentos."
”Art. 6º O órgão de vigilância sanitária federal competente estabelecerá as listas de medicamentos de venda livre, de venda sob prescrição e retenção de receita e de venda sob responsabilidade do farmacêutico, sem retenção de receita."
Dezembro de 2016: O "Cavalo de Troia" Legislativo
Sete anos depois, o Governo Federal edita a Medida Provisória (MP) nº 754/2016. O texto original tratava exclusivamente de regulação de preços de medicamentos, um tema polêmico que dominou o debate público e a atenção da imprensa. O SNCM não tinha nenhuma relação com o assunto.
Início de 2017: O "Jabuti" e a Mutilação Silenciosa
Enquanto o Congresso debatia os preços, uma manobra acontecia nos bastidores. Durante a análise da MP em uma Comissão Mista, um "jabuti" foi inserido no texto final que iria a votação. Este "corpo estranho" alterava diretamente a lei do SNCM de 2009. Enquanto o debate público focava nos preços, a mudança real acontecia nos bastidores.
O que significa "Jabuti": Como uma Lei é Desvirtuada no Congresso
No Brasil, o trâmite de uma lei é complexo. Uma Medida Provisória (MP), editada pelo Presidente, tem força de lei imediata, mas precisa ser aprovada pelo Congresso para se tornar definitiva. No Congresso, ela é analisada por uma comissão, onde parlamentares podem propor emendas (alterações). O Relator da comissão tem o poder de aceitar ou rejeitar essas emendas e redigir um texto final, que vai a votação. É nesse processo que um "jabuti" — um tema estranho ao texto original — pode ser inserido.
28 de Dezembro de 2016: A Lei de Conversão e a Cortina de Fumaça
O texto do relator é aprovado e se torna a Lei nº 13.410/2016. O seu Art. 12 é cirúrgico: ele revoga a obrigatoriedade de registrar a "dispensação". O rastreamento, que antes ia até o balcão, passou a morrer na porta do almoxarifado da farmácia. Para disfarçar a mutilação e dar um ar de modernidade, a mesma lei introduziu a previsão da bula em formato digital. Ganhamos uma conveniência, mas perdemos a principal ferramenta de controle e saúde pública que teríamos em décadas.
O Atraso de 7 Anos: Por que a Lei Não Foi Implementada Antes?
Uma pergunta fundamental surge: por que uma lei de 2009 só foi alterada em 2016? A resposta está na complexidade do sistema e na resistência silenciosa que ele enfrentou desde o início. A implementação do SNCM exigia investimentos altíssimos de toda a cadeia: a indústria precisaria adaptar suas linhas de produção; distribuidores e farmácias precisariam de novos softwares e equipamentos. Essa complexidade, somada à falta de interesse da indústria em um sistema que traria transparência total aos seus dados de venda, resultou em sucessivos adiamentos e debates técnicos que se arrastaram por anos.
Por que Fizeram Isso? Os Interesses por Trás da Manobra
A remoção da dispensação atendia a um único e poderoso interesse: o de impedir a criação de um banco de dados público sobre o consumo de medicamentos. Com esses dados, o governo, como maior comprador, teria um poder de barganha imenso para negociar preços com a indústria farmacêutica. Ao manter esses dados opacos, a indústria protegeu seus interesses comerciais em detrimento da transparência e da saúde pública.
As Consequências: Um Sistema Inútil e a Desvalorização do Farmacêutico
Esvaziado de seu propósito, o SNCM tornou-se um projeto caríssimo e sem benefício social, levando a Anvisa a, em 2022, pedir a suspensão de seu desenvolvimento. O resultado é o vácuo que vivemos hoje.
Enquanto em países como EUA e Alemanha o controle rigoroso reforça a importância do farmacêutico como guardião final da segurança, no Brasil, essa manobra legislativa nos manteve na posição de "vendedores". A história do SNCM é a prova de que a nossa desvalorização é, muitas vezes, decidida nos bastidores do poder. É por isso que nossa campanha defende uma representação forte e vigilante, que lute para que os interesses da nossa profissão e da saúde do paciente não sejam moeda de troca.